Se o Estado líquido for história

O líquido que fluí e impera na atmosfera da história
É um enorme rio violento e amargo
Derrama o seu caldo em todos os espaços
Destrói o que está organizado
Apaga os escritos mais anarquizados
Extingui o oposto, irregular e o avesso a sua correnteza

O líquido fluí por todos os buracos que falam
E transborda pelas porosidades que se calam
Penetra nas fissuras
Modela as estatuas solidificadas
Desfigura os mais friáveis

Um fogo que se ergue é apagado
Ventos violentos não alteram a direção
O fluxo é único, avassalante
Não sobram ilhas, nem margens
Fica tudo bem lavado
Atmosfera histórica limpa

Há um horizonte muito claro na metamorfose do tempo

O que resta é contaminar esta água que almeja a limpeza
No movimento do avassalador
Deve conter pedras capazes de mudar o seu curso
As margens que o controlam
E os seres vivos que o contaminam de idéias

Conforme a história, o líquido tem um temor
O vácuo, o vazio...
Se isto ocorre é em virtude de um volume sólido
Impermeável, duro e sem fissuras
O líquido o contornará
Mas se este crescer terá todos os espaços
De forma que o rio perde o curso
Submerge no nada
E o sólido encrava na história
Como martelos que quebram ampulhetas e espalham a areia no tempo
Quando a orquestra cadavérica de Satã chegar
Não haverá cântico, apenas massacre
Falantes cadáveres infernais
Berram mil vocábulos diabólicos
Dentes que rangem como cães famintos
Batidas flamejantes
Rugidos ofegantes
Estrondo de blasfêmias
O eco incomodará os mais escondidos
Temor e vomito negro
Como carniças que fedem
Cristãos fodidos
Demônios sopram em flautas ósseas
Tíbias do rebanho porco
Exala o odor e clama destruição
A escuridão que contorna o ambiente
Também abraça a sinfonia doentia
O fogo inflama nos corações negros
Incinera os crucifixos
Desgraça o sentimento humano
Que devora o sagrado
Engole incontestavelmente insano
E cospe desagradavelmente profano
Em uma aula de historiografia, um professor nos disse que os escritores revelam muito mais em seus textos o seu próprio “eu” do que propriamente o objeto ao qual ele se refere. Desde então percebi como ele estava certo, não porque vi o egoísmo de alguns autores cravados nos livros de história, mas o diálogo que muitas vezes empreendem se colocando cada vez mais dentro dos eventos. O que dizer de documentos não escritos? Estes sim são as portas abertas para liberdade da escrita histórica, sem invocar arqueologismos, etnologismos ou qualquer outro cientificismo comprometedor.



Arte-fato.

O artefato admira. Com repulsa, desespero ou angústia? É um olhar que revela apenas o solo escuro, vestígios de seu desterro longínquo à volta a história que existiu distante. Talvez um pouco de memórias de subsolo, faz com que ele [o artefato] reflita à medida que a noite caía e que a obscuridade se fazia mais densa, minhas impressões e em seguida minhas idéias se misturavam, se confundiam. Havia alguma coisa em mim, no fundo do meu coração, no fundo da minha consciência, alguma coisa que não queria morrer e que se revelava por uma estranha angústia (F. Dostoiewski).
Ainda respirava... Estranhamente suspirava memórias pelos dois orifícios abaixo do olhar enigmático. O nariz não estava confortável com o solo que o cobriu durante todos esses anos. Não estava preocupado com os micróbios nem mesmo com as atividades bióticas que ocorriam ao seu redor. Só desentendia porque tanta vida num espaço de morte.
Ele gritará aos subterrâneos, mas ninguém o ouvia. A boca com um vácuo esferóide, muito profunda, fez ecoar na eternidade o esquecimento. Ninguém recorda, mas ele sabe o que pronunciou, logo ali, abaixo de nossos pés. Estava lá todo tempo se expressando, queria morrer, deveria ter morrido. Por mais que tenha erodido sua face, ele continuou por ali, não se movia. Mas de tanto querer ser humano, a argila se fez homem e eternizou num grito de insurdescência aos artesãos [surdos] modernos, que modelam a contemporaneidade silenciosamente.