INVARIÁVEL MATERIALIDADE

(...) Então nasce nele o estranho imperativo: ou parar de escrever, ou escrever como um rato... Se o escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir, escrever é atravessado por estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-lobo, etc. Será preciso dizer por quê. Muitos suicídios de escritores se explicam por essas participações anti-natureza, essas núpcias anti-natureza. O escritor é um feiticeiro porque vive o animal como a única população perante a qual ele é responsável de direito (...) Deleuze & Guattari. Um trecho solto de Mil Platôs - Capitalismo e Esquizofrenia (1980). Uma epígrafe no vazio.



1. É detestável pensar no cotidiano como ele é construído, endurecido e submergido no tempo. É uma visão cruzada para elementos concretos e compreensíveis das criaturas que inventam mundo-perverso. Sofria bastante quando via calçadas imundas no centro, um meio-fio podre e lodo escurecido onde não pude debruçar-me. Padecia por não estar ali, dentro da imundície como qualquer larva que se relacionava com as outras. Era um existido que ecoava desespero somente em mim, a sujeira a qual os meus iguais não poderiam participar porque se sentiam lavadinhos mas haviam entupido todos os seus buracos com as materialidades, não lhes sobravam nem o anus onde a merda estava travada na entrada. Foi um evento pouco significativo, porém, oferecia a liberdade de esquivar-me da sociedade vomitada em ostentação. Era preferível mergulhar naqueles detritos mastigados e defecados. Isso não é um apelo a imundície.



2. Afundei denso. Fluía merda, e ela se fazia presente em todos os pulmões que absorviam o odor fétido flutuando sobre as nossas cabeças. Eu olhava com o corpo inclinado para frente e orgãos pendurados por fios, observava a geometria que ligava os indivíduos; linhas horizontais, verticais e uma fresta de fuga. Eu fugindo da materialidade, enxergava só materialidade. Era só aquilo que existia no vivido, no agora; metamorfoseado sem questionamentos, havia um circulo de indivíduos e um ordenamento deles em minha mente. Não era por acaso, mas era apenas uma fatia da imagem. O ambiente se restringia à uma coluna de concreto, degraus sombreados com quadriculados e muita imundície. O resto era meta-física diluída.



3. A coluna vertebral já ia bem amolada, o corpo estava pedestalizado neste obelisco. A traquéia demasiada ácida sentia cada saliva seca migrando. Um mal-estar proliferava no organismo, o sangue circulava morno. Esgotamento e enfrentamento. Uns quatro passos abaixo dos degraus e me apoiei na coluna de concreto; pensei o que constituía aquele instante, o gesto, naquele espaço vazio-social cada vez mais um todo-material. É como se o instante estivesse condenado às linhas que distribuíam os indivíduos que ao mesmo tempo se manifestavam através de uma linguagem. O instante indicava uma manifestação superior aos nossos pérfidos pensamentos. Um momento intenso sem preocupações mergulhado nas fezes. A memória se esvaziava e sedia lugar ao momentâneo, este se prolongava pela profundidade que mergulhava na reflexão das representações materializadas. Na realidade não é possível definir se são representações materializadas ou materializações representadas! Diria que enquanto vermes e micróbios envolvem o ambiente no espaço pútrido, a fala funciona como um mecanismo que possui um ponto de partida, seja ele um simples cumprimento ou um diálogo extenso. O ponto em discussão é para onde esta fala migra, se migra ou se possui um ponto de impacto que atinge o sujeito. Não creio que ela seja inerte, as fezes não são imóveis, não se originam da digestão: fluxo ordenado de idéias, posteriormente paralisadas no fundo estomacal. É necessário ter um caos cá adentro para gerar uma merda. Diria então que esta conexão dos indivíduos é uma fala, a linguagem dos materializados, daqueles que falam muita merda. Lembro que esta conexão a qual me refiro agora não é geométrica, mas aleatória, se enfia em qualquer buraco ou pode sair de qualquer orifício, como fezes. Ela parece fluir no popular. Não é uma questão de desperdício do discurso, mas é a assinatura do óbito histórico?